Uma semana sem Marcão
Atualizado: 30 de set. de 2020

O fim de semana foi de sol. Certamente, Marcão estaria com seu cavaco cantando sambas para a distração de turistas e visitantes do Mirante do Leblon, emoldurado pelo Morro Dois Irmãos. Essa que é a montanha onde se localiza a favela que tanto defendeu, ajudou a construir e declarou amor através de versos. O cavaco emudeceu. Marcão se foi.
Marco Aurélio, também conhecido como Marco 7 ou Marcão do Cavaco, faleceu em casa e seu corpo foi sepultado na última terça-feira. A partida solitária e a tímida despedida fizeram-me refletir sobre como temos tratado os nossos vidigalenses de raiz. Aqueles que contribuíram para a nossa permanência nesse território.
Marcão participou ativamente da luta contra a remoção dos barracos localizados na área do Vidigal conhecida como 314, em 1977. Membro da AMVV (Associação de Moradores da Vila do Vidigal), foi diretor cultural da instituição e promoveu vários eventos a fim de angariar dinheiro para os gastos com os processos que tinham como representante da causa favelada o jurista Bento Rubião, coordenado por Sobral Pinto, o "Senhor Justiça".
O diretor cultural da AMVV realizou também diversos eventos em prol da urbanização do Vidigal. Sagaz, decidiu criar um periódico comunitário para informar os favelados sobre as ações da associação de moradores e assim conquistar adesão para a luta em defesa do direito à moradia e à vida digna da classe trabalhadora. Em 1978 fundou O Mensageiro do Vidigal.
O periódico foi lançado dois dias após o seu aniversário, no dia14 de setembro. O Mensageiro do Vidigal não tratava exclusivamente da divulgação das ações da AMVV, as matérias também se dedicavam em relatar acontecimentos de outras favelas, aspectos da política nacional e internacional, além de incentivar e promover a cultura na favela. Também pudera, seu editor, além de engajado no movimento de base comunitária, era artista.
Músico, Marcão sonhava em ser reconhecido, fazer sucesso. Chegou a gravar um LP na década de 1980 e fez shows em diversos lugares. Um dos parceiros na arte foi o saudoso Sérgio Ricardo, outro bravo na luta em defesa do Vidigal.

Marcão e Sérgio Ricardo, Vidigal, anos 1970. Essa fotografia foi usada na divulgação da reedição do show Tijolo por tijolo, em 2016.

Arquivo do Marcão. Marcão entre músicos como Dakitary, Sérgio Ricardo e Marquinho do 314, em show na década de 1970.
Dom Marco 7, como muitos o chamavam, usou o seu talento a favor de sua favela. Compôs diversos sambas com temáticas implicadas com o Vidigal. No O Mensageiro do Vidigal, matéria recorrente era a relacionada aos mutirões. Marcão era incansável na busca de adesões para a causa coletiva.

Foto de uma página do Mensageiro. Arquivo da autora cedido para o Núcleo de Memória do Vidigal.
Os mutirões foram uma iniciativa da população favelada e mais tarde adotada como medida de governo voltada para a urbanização e estruturação das favelas. O primeiro mutirão no Vidigal foi para a construção das escadas da hoje denominada rua Bento Rubião, em 1979. Além do asfaltamento, colocação de caçambas de lixo, saneamento e construção de prédios públicos (sede da AMVV, Centro Cultural do Vidigal, creche e posto de saúde), os mutirões também se dedicaram à construção de casas de alvenaria em substituição dos barracos de taipa e madeira, após a conquista da permanência dos moradores no Vidigal.
Em 1984, o governador Leonel Brizola implementou o Projeto Mutirão. Esse projeto realizou obras em diversas favelas, tais como: instalação de rede de água e esgotos, pavimentação das ruas, construção de escadarias e contenção de encostas. Utilizava-se de mão-de-obra local remunerada e administrada pelas Associações de Moradores. Porém, antes do projeto governamental, as obras no Vidigal eram realizadas nos finais de semana, período de folga daqueles que trabalhavam nos mutirões. O jornal O Mensageiro do Vidigal era o veículo para a convocação dos voluntários. Para atingir esse propósito, Marcão chegou a compor um samba!

Foto de uma página de O Mensageiro do Vidigal. Arquivo da autora cedido para o Núcleo de Memória do Vidigal.
Dentre várias músicas compostas para a sua favela, destaca-se o samba em homenagem à vinda do Papa João Paulo II ao Vidigal, em 1980. Na ocasião, os compositores recepcionaram a Vossa Santidade com a canção.
"Saudação ao Papa
Letra e música: Moacir, Marcão e Marquinho
Sob o clima de intensa alegria
Está em festa a Vila do Vidigal,
Pra agradecer sua presença divina,
Renovando esperanças de todo povo local.
Nossa ardente luta contra a remoção
Comoveu o mundo inteiro.
Suba o morro para ter mais visão,
Poiso favelado também é brasileiro.
Tanto fez até que aconteceu
Conquistamos mais um marco de nossa história
Hoje somos símbolo de força e união
Sua presença é nosso grito de vitória.
Sua Santidade João Paulo II
Veio abraçar um trabalhador oriundo
de uma classe baixa, mas que sempre lutou
Os favelados lhe desejam muita paz e muito amor".
Nos últimos anos, Marcão estava afastado do movimento comunitário. Em 2015, ocasião dos 75 anos oficiais do Vidigal, Marcão junto com outros sambistas de sua geração e a juventude composta por cantores de hip hop compuseram o hino do Vidigal. Foi presença importante na reedição do show Tijolo por tijolo (2016), dirigido pelo seu antigo parceiro artístico e companheiro de militância: Sérgio Ricardo.

Foto: Edi Heinz. Marcão e Sérgio Ricardo, na reedição do show Tijolo por tijolo.
"Marcão era de uma alegria genuína à época da remoção. Jovem, conhecia a todos e conseguia trazer mais pessoas para a causa. Ele fazia rede de contatos como ninguém! Gostava de fazer poesia e por querer musica-las aprendeu cavaquinho. Se relacionava com artistas desde de sempre, queria colocar suas letras no cenário musical carioca, fez parcerias com outros artistas do Vidigal, gravou disco. Na associação era incansável, batalhou para criar e manter o jornal do Vidigal. A memória que tenho do Marcão é de uma pessoa muito bom coração e que a vida o deixou amargurada. Ele queria ser reconhecido como artista _ na minha opinião. Desejo que toque seu cavaquinho e com sua voz grave encante a festa no céu ao reencontrar Dona Alvina (sua mãe) e seus amigos do Vidigal.
Fico com as boas lembranças de muitas conversas nas madrugadas e durante as impressões e entrevistas para O Mensageiro do Vidigal". (Filomena Di Prinzio - ex-integrante do Departamento de Mulheres da AMVV)
Embora tenha sido uma figura fundamental para a trajetória do Vidigal e apesar de seu talento como músico, Marcão passou os últimos anos de sua vida amargurado. Muitos dos que passavam em frente à casa no 314 com a cerca eternamente ameaçando cair não sabiam que ali residia um bravo defensor da causa favelada, do direito à moradia e à urbanização. O boêmio que tanto pregou a união nas linhas do "Mensageiro", morreu sozinho, isolado em casa.
Como mestra em Memória Social e responsável pelo Núcleo de Memórias do Vidigal, fico feliz por ter proporcionado momentos de reconhecimento da sua importância para o morro. Um deles foi a comemoração dos 40 anos de resistência do Vidigal, em 2017, no Colégio Estadual Almirante Tamandaré. Marcão foi homenageado e no final do evento continuamos a confraternização acompanhados de amigos e cerveja. Foi um dia de lembranças do Vidigal do passado, gargalhadas e afeto. Ele merecia vários momentos como esse. É com essa imagem que me despeço daquele que antes de mim já usava a comunicação comunitária como veículo contra opressões e construção da cidadania.

Arquivo da autora. Em sentido horário: Ninho, Julio Ludemir, Felipe Paiva, Rosa Batista, Adilson Severo, Rose Perenha, Bárbara Nascimento e Marcão.
Obrigada, Marcão! Aproveita que seu parceiro Sérgio Ricardo já está por aí e continuem o samba.