DEPOIMENTO DE JULIO LUDEMIR, MORADOR DA BABILÔNIA
"Confesso que não tenho respeitado o absoluto confinamento, ainda que tenha sido o mais precavido possível nos poucos movimentos que faço pela rua. Mas a cada passo que dou aqui na favela eu me preocupo mais com o que está por vir. Fico com vontade de falar com o comandante da UPP, que ainda não liberou os mototáxis de andarem sem aquele capacete pelas ladeiras da Babilônia - e em breve eles certamente serão vetores do vírus.
Como também serão vetores do vírus as crianças correndo pelos becos, os amigos se abraçando nas biroscas, os copos compartilhando cerveja - toda essa maneira corporal de ser dos ambientes populares, onde o toque e a proximidade são tão necessários, uma razão de ser que nem as igrejas neopentecostais conseguiram mudar. Parece que o vírus ainda não chegou, mas vai chegar. Vai chegar porque o meu amigo que vende empada tanto na favela quanto no asfalto certamente deve ter um monte de boleto para pagar - e até agora ninguém ofereceu uma alternativa para ele senão a de continuar andando por aí com seu tabuleiro, oferecendo seu produto, seu delicioso produto, a um real. Também não ouvi ou vi nenhuma proposta que permita que a minha vizinha, que trabalha como faxineira, traga a boa e velha mistura para casa - para crianças que mais do que nunca precisam dessa mistura, agora que as escolas estão fechadas, as escolas que desde a época do Brizola se tornaram também espaço para que as crianças no mínimo comam um prato de macarrão com salsicha. Ninguém cogitou uma maneira de remuneração para minha amiga que desce todos os dias para vender pelo menos uma canga no calçadão - sua meta diária, mesmo que para isso ela precise ir até a Barra, até o Grumari ou mesmo a São Paulo, agora que as ruas estão desertas, agora que as ruas foram abandonadas pelos turistas e pela classe média. Desculpe, governador, que aparentemente não está sendo tão patético quanto o presidente e o prefeito, mas você não diz nada para ninguém aqui quando diz que não vai cobrar água nos próximos dois meses. O problema aqui é ter água, que jamais chega com a quantidade necessária para que lavemos as mãos com a frequência exigida pela crise sanitária, muito menos para lavarmos as roupas tão logo entremos em casa. Desculpem a todos pelo meu silêncio, mas fica difícil não falar o óbvio ululante, que vai ter efeitos devastadores aqui e nas demais favelas do Rio de Janeiro, do Brasil. Entendo que o home-office de fato seja uma saída, mas sou forçado a entender quando meu amigo que trabalha na praia me diz que, se ele não for para a praia, se ele não se expuser ao risco inerente ao trabalho informal e precarizado, não poderá terminar a obra em casa - aquela obra tão inadiável quanto o nascimento do seu filho, razão dos investimentos que tem feito para ampliar seu barraco. Esse povo carioca, o verdadeiro povo carioca, trabalha fundamentalmente por conta própria. Não tem nenhum contrato que o proteja, além do contrato com Deus, com a vida, com a família. Esse povo, que acredita no ethos do guerreiro, que se sente capaz de vencer qualquer obstáculo, não poderá ficar dentro de casa nesse período de crise porque aprendeu ao longo de toda uma vida que a comida não vai cair do céu, que todos somos filhos de Deus, mas que precisamos ir à luta. E essa luta certamente não se dá dentro de casa, espaço de trabalho para privilegiados como eu, como você, que exatamente por sermos privilegiados estamos produzindo ficções para acreditarmos que nos basta ficar em casa para mantermos o vírus lá fora. Que o coronavírus fique do lado de fora, mas não nossa inteligência, não a nossa sensibilidade, não a nossa necessidade de entendermos que não estamos sozinhos neste planeta"
Texto originalmente publicado no Facebook:
https://www.facebook.com/julio.ludemir/posts/3823463374338146

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